O nosso panfleto sobre o Marrocos (1911)*

Rosa Luxemburgo critica um panfleto de autoria de Karl Kautsky sobre a questão do Marrocos, por não abordar a ligação entre imperialismo e capitalismo, essencial para compreender a política internacional da época. Só essa conexão poderia explicar o interesse das potências mundiais pelo Marrocos, a ponto de quase ter sido deflagrada uma guerra entre Alemanha e França.

Deve ter sido motivo de satisfação para muitos círculos partidários que o nosso partido, depois de ter decidido por fim lançar uma campanha de massas contra o caso do Marrocos,[1] tenha publicado imediatamente um panfleto com essa finalidade.[2] Menos estimulantes do que as reuniões públicas, mas muito mais duradouros no seu efeito, os panfletos são chamados a levar o esclarecimento às mais vastas massas populares, a familiarizá-las com nossos pontos de vista, mesmo em círculos que ainda não estão suficientemente despertos para virem a reuniões social-democratas. Como pioneiros que devem abrir caminho para nós em círculos que ainda não foram conquistados, e como um meio de reforçar constantemente a visão de mundo social-democrata naqueles que já foram conquistados, os panfletos são uma arma extraordinariamente importante para nós, e o partido deve dedicar a maior atenção à sua produção.

Ao olharmos para o panfleto sobre o caso do Marrocos, lembramo-nos involuntariamente do provérbio: “As coisas boas levam tempo!” Se a decisão de atuar contra a propaganda a favor da guerra não tivesse sido tomada tão apressada e tardiamente, e se o panfleto não tivesse sido concluído de um dia para o outro, provavelmente teríamos obtido algo útil. No entanto, em sua forma atual, é preciso infelizmente dizer que o panfleto, que foi distribuído às centenas de milhares, é quase esforço perdido.

A primeira coisa que se deve esperar de um panfleto que pretenda elucidar a questão do Marrocos de uma perspectiva social-democrata é a conexão entre o imperialismo (Weltpolitik) e o desenvolvimento capitalista. Antes de tudo, é preciso apresentar às massas populares o que é o imperialismo atual. Afinal de contas, o título do panfleto diz: Imperialismo, guerra mundial e social-democracia. A primeira palavra, portanto, deveria ser o esclarecimento da natureza do imperialismo, na verdade uma análise de sua conexão com a alta maturidade do capitalismo atual. Essa conexão é o único meio de ancorar historicamente nossa posição sobre o imperialismo e a ligação deste com o socialismo. Caso contrário, resta-nos apenas a indignação “ética” perante a desumanidade da guerra, ou o ponto de vista tacanho do comerciante: nós, os trabalhadores, não lucraremos com o imperialismo. O panfleto do partido não contém uma única palavra sobre a natureza do imperialismo e de sua conexão com o capitalismo, sobre o essencial da nossa concepção. Não há nenhuma menção ao imperialismo como fenômeno internacional. O panfleto começa imediatamente com a oposição entre Alemanha e Inglaterra e centra todo o problema exclusivamente nessa oposição. Inglaterra e Alemanha, Alemanha e Inglaterra – é assim que se desenrola todo o panfleto, que, devido à sua terrível superficialidade geral, dá mais a impressão de politicagem social-democrata do que de análise social-democrata dos grandes problemas. Além disso, em nossa opinião, seria de esperar que o panfleto abordasse, pelo menos, a relação entre o imperialismo em geral e o caso do Marrocos em particular com o desenvolvimento interno da Alemanha, com o militarismo, o navalismo, com a política financeira e fiscal, com a estagnação e a reação no campo sociopolítico, com a insustentabilidade de toda a situação interna. Mas não encontramos nem uma única palavra sobre isso no panfleto. Onde se menciona o armamento da Alemanha, esse também só é mencionado do ponto de vista do conflito com a Inglaterra, ou seja, como a fonte desse conflito. Mas de onde vêm esses armamentos e o desejo de a Alemanha ser uma potência mundial, assim como todos os outros Estados, permanece obscuro e não é abordado de forma alguma.

Sabemos bem que um panfleto não é um tratado acadêmico, que tem de ser curto e popular. Mas isso não nos dispensa, em circunstância alguma, de expor, ainda que em breves palavras, nossos pontos de vista mais importantes e mais fundamentais sobre o problema em debate. No panfleto em apreço não há qualquer referência a esses pontos de vista, não por falta de espaço, mas porque toda a questão foi colocada numa base falsa. Em vez de analisar em grandes conexões gerais, como promete o título, o caso do Marrocos apenas como fenômeno parcial do imperialismo internacional, o panfleto fica atolado na oposição parcial entre Alemanha e Inglaterra e, em vez de – o que é apenas a consequência disso – explicar o imperialismo como produto legítimo do desenvolvimento capitalista, esforça-se constantemente por apresentá-lo como insensatez, disparate, inclusive do ponto de vista da sociedade capitalista. Guiado por essa ideia original, o panfleto procura provar a todo momento que a política imperialista e colonial não consistiria em ganho para as classes proprietárias, mas seria sim um fardo. Assim, o partido não só entra numa contradição bizarra com o fato óbvio de que hoje em dia todas as classes proprietárias na Alemanha, tal como nos outros países, tendem ao patriotismo colonial, ao entusiasmo pelos militares e ao nacionalismo, como também se encontra na posição cômica de querer compreender os interesses das classes burguesas melhor do que essas próprias classes, o que normalmente é o contrário. Também aqui o partido assume a tarefa de combater o imperialismo capitalista e o militarismo, não do ponto de vista da luta de classes proletária, mas, no que tange a esse ponto, em nome de uma alegada harmonia de interesses entre o proletariado e “a massa das classes proprietárias”! Seria difícil pensar em algo mais perverso. E para provar essa fantástica harmonia de interesses, o panfleto chega ao ponto de afirmar que as classes burguesas não são patrioticamente belicistas, que elas estão “ansiosamente preocupadas com a paz”. Mas seu entusiasmo pelo imperialismo explica-se em parte por pura ignorância – sobre a qual a social-democracia tem quase a tarefa de esclarecer, não o proletariado mas sobretudo as classes burguesas sobre seus verdadeiros interesses – e em parte por “servilismo e ambição”! Estas últimas razões, em particular, são a única explicação para a atual atitude dos Liberais (Freisinn) e do Centro (Zentrum) em relação ao militarismo e ao imperialismo! A profundidade da concepção a respeito do desenvolvimento político-partidário interno da Alemanha corresponde inteiramente à profundidade da concepção do seu desenvolvimento imperialista.

Qual é, afinal, o grande segredo, cujo desconhecimento conduz a sociedade burguesa na Alemanha ao seu entusiasmo equivocado pelo imperialismo e cujo conhecimento dá a chave da posição social-democrata? É o fato de a “esplêndida política colonial inglesa” ser de uma vez por todas inatingível para outros Estados, de os dias das vacas gordas do imperialismo terem acabado. A política colonial inglesa baseava-se no fato de as nações não-europeias se encontrarem indefesas em termos de tecnologia bélica e devido a sua organização estatal atrasada, mas, desde então, a tecnologia europeia e as instituições europeias foram introduzidas em todo o Oriente e o domínio colonial deixou de ser possível. Com isso se acaba o problema do imperialismo! Seria necessário o espaço inteiro do panfleto para discutir todas as inconsistências históricas que estão incluídas nessa breve formulação do problema. Em todo o caso, não podemos deixar de ficar constrangidos com as garantias do folheto sobre a ignorância dos partidos burgueses a respeito das questões imperialistas. Mas o mais importante é que esse emaranhado de inconsistências históricas apenas expressa a base fundamentalmente errada a partir da qual o imperialismo está sendo atacado. Aqui se trabalha apenas com o esquema desgastado, segundo o qual a política colonial é um mau negócio para todos. De acordo com esse esquema, lutamos contra a política colonial só porque ela não traz nada e, dessa forma, fica provado às massas, para torná-las avessas ao imperialismo, que ele realmente não pode trazer mais nada. O outro lado dessa concepção é que o interesse da burguesia pelo imperialismo se identifica com o lucro direto e sólido, com o interesse nu e cru do bolso, de onde se conclui que, de toda a sociedade burguesa, apenas um punhado de fornecedores navais apoia o imperialismo, que, de resto, paira no ar, enquanto o entusiasmo de todas as classes proprietárias se baseia na ignorância, no servilismo e em fundamentos psicológicos semelhantes.

Acrescentemos que em todo o panfleto não se diz uma palavra sobre os povos, sobre os nativos das colônias, sobre seus direitos, interesses e sofrimentos em consequência do imperialismo, que o panfleto fala várias vezes da “brilhante política colonial inglesa” sem mencionar o tifo periódico entre os indianos produzido pela fome, o extermínio dos nativos da Austrália, o chicote de pele de hipopótamo nas costas dos felás egípcios; acrescentemos que o panfleto não diz uma palavra sobre a situação vergonhosa do povo alemão, que aguarda a decisão de Kiderlen[3] sobre a questão marroquina, nem uma palavra sobre o papel lamentável do Reichstag e a necessidade da sua convocação, nem uma palavra sobre o regime monárquico ditatorial e seu papel no imperialismo e, finalmente, nem uma palavra sobre o socialismo e seus objetivos!

Sabemos muito bem que é mais fácil criticar do que escrever, e é mais fácil escrever um artigo de jornal do que um panfleto popular. Os editores do panfleto tinham certamente as melhores intenções. No entanto, parece-nos estar fora de dúvida que não podemos fazer justiça às nossas tarefas com tal panfleto e que, por outro lado, teríamos recebido um panfleto muito mais adequado e bem pensado se a ação tivesse sido empreendida com calma consideração, rigor e exame crítico, não com pressa e repentinamente.

De qualquer forma, esse panfleto oficial do partido, bem como o fato de os artigos de Bernstein[4] poderem ser publicados no órgão central sem contestação provam que a questão marroquina e o imperialismo ainda exigem esclarecimentos em nossas fileiras, que não podem ser descartados com slogans contra a guerra e que o congresso do partido[5] deve tratar desse problema de forma séria e profunda.

Leipziger Volskszeitung, no 197, 26 de agosto de 1911

Tradução de Isabel Loureiro


* Publicado em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 3, Berlim, Dietz, 1984, p.32-36.

[1] Na primavera de 1911, a França havia tentado ampliar o seu domínio a todo o território marroquino e consolidá-lo definitivamente. O governo alemão aproveitou essa ação para declarar que a Alemanha já não se sentia vinculada ao Acordo de Algeciras. Em 1 de julho de 1911, o governo alemão envia os navios de guerra “Panther” e “Berlin” para Agadir, provocando uma ameaça de guerra iminente. A intervenção da Inglaterra a favor da França obriga os políticos alemães pró-colonialismo a ceder, sendo alcançado um compromisso entre França e Alemanha.

[2] Em 8 de agosto de 1911, depois de muitas hesitações e sob a pressão dos membros do partido, a direção do partido social-democrata convocara a imprensa partidária a protestar contra a política imperialista no Marrocos e a garantir a paz. O folheto publicado na mesma altura era da autoria de Karl Kautsky.

[3] Alfred von Kiderlen-Waechter (1852-1912): secretário dos negócios estrangeiros de 1910 a 1912.

[4] Eduard Bernstein, Die auswärtige Politik des Deutschen Reiches und die Sozialdemokratie, Vorwärts, Berlim, no 188 e 189 de 13 e 15 de agosto de 1911.

[5] O Congresso do Partido Social-Democrata realizou-se em Jena de 10 a 16 de setembro de 1911.